Ações do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Avaliação, Educação Popular e Escola Pública (Gepaep)

Lentes baças, vistas tortas: um olhar decolonial sobre aprendizagemensino de História

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Samba-Enredo 2019 – Histórias Para Ninar Gente Grande
G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira (RJ)

Escrever sobre a multiplicidade que compõe o cotidiano é um desafio. Entre tantas experiências vivenciadas com as crianças, consideradas aqui sujeitos históricos possuidores de ricas vivências construo, no caderno tamanho A4, cheio de anotações para suprir lapsos de memória sobre assuntos considerados de grande importância, diário de campo. Tantas linhas escritas em meio a bilhetes e desenhos que tornam a rotina mais leve, mas não menos densa. O exercício de construção de sentido é diário. Há anos me vejo buscando sair do lugar de fazer para e indo para o lugar de fazer com, pois é o com os estudantes que faz sentido e que me faz sentir… é desse lugar de fala que me constituo como professora pesquisadora.

“Ninguém começa a ser professor numa certa terça-feira às 4 horas da tarde… Ninguém nasce professor ou marcado para ser professor. A gente se forma como educador permanentemente na prática e na reflexão sobre a prática.” (FREIRE, 1991)

Era 2019, meados de maio, em equipe procurávamos alternativas para construção de um diálogo entre os conteúdos propostos no projeto político pedagógico institucional e nossas concepções decoloniais de aprendizagemensino. Como pensar o ensino de História e Geografia, no 4º ano do Ensino Fundamental, abordando temas como a Chegada da Família Real Portuguesa e a Escravidão no Brasil com uma perspectiva antirracista? De que forma conversar algo tão profundo com as crianças, considerando a subjetividade da faixa etária mas, ao mesmo tempo, ultrapassando a superficialidade presente no livro didático que, muitas vezes, ainda apresenta um papel de herói ao colonizador?

As perguntas, tão presentes em meu cotidiano, me ajudam a trilhar o meu caminho de descoberta e formação como docente. São essas provocações que conduzem as buscas por teorias que oportunizem reconfigurações da própria prática, na prática, como explicita Garcia (2003): “[…] partimos da prática, vamos à teoria a fim de a compreendermos e à prática retornamos com a teoria ressignificada, atualizada, recriada, dela nos valendo para melhor interferirmos na prática.”

O ensino de História, em uma perspectiva decolonial, tem o cuidado de apresentar aos educandos a história contada sobre diversas perspectivas, não apenas do colonizador, o que dialoga com os apontamentos de Chimamanda Ngozi Adichie, em “O Perigo de uma história única”.

É assim, pois, que se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão. […] Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. […] A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.

Entre as diversas vivências que tivemos, saliento aqui a riqueza da desnaturalização. O racismo estrutural aparece de forma muito velada em nossa sociedade, quase como uma película translúcida, que para alguns é transparente, mas para outros arde, fere. E, embora acreditemos que ninguém nasce racista, a partir do momento em que não temos posturas antirracistas contribuímos para a permanência dessa estrutura de sociedade.

Durante nossos estudos, muitas crianças demonstraram certo interesse em conhecer mais sobre a escravidão, pois ficaram muito incomodadas com o fato de o “sequestro de pessoas” – como eles chamaram – ser permitido. Os estudantes apresentaram diversos questionamentos, como por exemplo: “Por que não escravizavam pessoas brancas?”, “Eles chicoteavam as crianças?” , “Os bebês escravizados faziam que tipo de trabalho?”, entre outras.

O trabalho desenvolvido envolveu a leitura de livros de história, pequenos vídeos, aula passeio pelo sítio histórico da cidade do Rio de Janeiro e muita parceria com as famílias das crianças, acreditando na potencialidade do trabalho a partir desta troca.

Um dia, levei a frase “Seu cabelo é de bombril” para que problematizássemos situações que ainda são rotineiras em nossa sociedade, sem muita reflexão. Como desafio, cada criança pesquisou em casa uma frase racista e trouxe na aula seguinte, para refletirmos coletivamente. Embora tenha sido um grande desafio, buscamos reescrever tais frases.

Escolho destacar essa experiência, pois foi uma das atividades que as crianças demonstraram maior envolvimento, assim, quando decidimos o que seria compartilhado em nossa Mostra Cultural, tivemos a ideia de colocar murais interativos, com cartazes e canetas penduradas, convidando a todos a reescreverem as frases, desnaturalizando falas que não cabem.

A educação antirracista não se esgota a partir de uma proposta de trabalho e pesquisa em um ano específico de escolaridade. A luta e a reflexão são diárias. Hoje, depois de vivências como essa me vejo outra, assim como eles e concluo na certeza de que na escola me reconstruo como ser humano.

Luana Armaroli Queiroz – julho de 2020.

Referências:

ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/chimamanda-adichie-o-perigo-de-uma-unica-historia/
Acesso em 11 de junho de 2020.
FREIRE, P. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
GARCIA, R. L. (org). Método: pesquisa com o cotidiano. DP&A, 2003.

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